O incêndio da Boate Kiss de Santa Maria (RS) fez seu primeiro aniversário em 27 de janeiro de 2014.
Naquela fatídica madrugada, em 2013, mais de mil pessoas dançavam e se divertiam. Dessas, 241 iriam morrer e mais de 600 ficariam feridas. Todos os sobreviventes levariam a marca da tragédia na lembrança.
A vida de milhares de pessoas foi afetada permanentemente. Pais, mães, noivos, namorados, amigos. Toda uma comunidade marcada pela tristeza... Para sempre.
As causas do incêndio foram amplamente discutidas pela mídia e não tenho aqui a pretensão de reabrir o debate. Porém, acredito que a causa raiz desse desastre poderia ser reduzida a uma sentença: "Falta de uma cultura prevencionista". Em linguagem de Higienista: Faltou Antecipação!
O brasileiro é otimista e isso é bom. Por outro lado, esta característica nos leva a menosprezar os riscos e acreditar que nunca nada vai dar errado. Com isso, negligenciamos aspectos básicos de prevenção de acidentes e doenças. Não só na vida laboral, mas também no cotidiano. Poucas pessoas têm extintores de incêndio em casa. Menos ainda saberiam utilizá-los. Poucas pessoas conhecem os riscos dos produtos químicos que manuseiam ou que dão para seus funcionários domésticos utilizarem. Estamos engordando, sendo mais sedentários que nunca, deteriorando nossa saúde.... Criando problemas que vão nos perturbar daqui há alguns anos... E deixando tudo para resolver quando a doença se manifestar. Para quê se preocupar agora, afinal?
No Brasil, é raro encontrar empresas que tenham seus programas de Higiene Ocupacional e Segurança bem implementados. Com sorte, encontramos isso em empresas maiores. Ainda assim, por força da Lei que tende a ser mais rigorosa com quem pode pagar multas mais gordas. Mesmo nesses casos, muitas vezes vemos que o trabalhador, tendo acesso a informação, sendo treinado e tendo recursos para se proteger, continua negligenciando a si mesmo. Gastam-se horas e horas em treinamentos, em equipamentos de proteção coletiva, em EPIs... E ainda vemos pessoas violando regras básicas de segurança nas empresas.
Não! Não é maldade, nem sabotagem, nem tentativa de suicídio... É a velha crença arraigada em nossa cultura: "Comigo não vai acontecer. Deus protege. Isso é exagero....etc". Na verdade, é uma forma de negar o perigo, na tentativa de fazê-lo desaparecer. Se eu não acredito no risco... então ele não existe.
Como resolver isso? Como mudar essa cultura? Qual é o papel do Higienista neste caso?
A Higiene Ocupacional tem seu foco na prevenção de doenças ocupacionais. Não é foco do Higienista prevenir acidentes. Para isso, precisamos do apoio dos nossos colegas da Engenharia de Segurança do Trabalho, da Segurança dos Processos e dos Especialistas em Prevenção e Combate a emergências.
Porém, não se pode dissociar uma disciplina da outra. Nenhuma é superior, mas todos somos pares no exercício da Prevenção.
No caso de Santa Maria, uma equipe multidisciplinar poderia ter antecipado os riscos e evitado a tragédia. Lembremos que ali também era um local de trabalho. Não para os jovens que dançavam, mas para os garçons, para os músicos, seguranças, caixas, pessoal de limpeza, etc. Todos estavam expostos. Os trabalhadores mais, porque estavam ali todos os dias. Assim sendo, deveria haver um bom programa de Segurança implementado. Deveria haver PPRA. Deveria haver análise de risco. Deveria haver um plano estruturado de emergência...Deveria haver bom senso!
Conforme estudo publicado pela ABHO (ver link ao final da página), um programa integrado de Saúde e Segurança poderia ter evitado essa tragédia. O Higienista contribuiria fazendo o estudo dos agentes químicos presentes no ambiente e participando da escolha da espuma a ser usada como isolante acústico. Conhecendo o material e seus produtos de decomposição em caso de incêndio, teria condições de sugerir outro material menos tóxico. Tudo isso poderia ter sido feito na etapa de Antecipação dos riscos, que deve acontecer na fase de projeto.
Ao especialista em emergência caberia definir salvaguardas adicionais, tais como, planos de emergência, equipamentos de proteção para os bombeiros em caso de incêndio, rotas de fuga bem sinalizadas, sistemas de combate eficientes, etc...Mais uma vez, entra o Higienista, ajudando a selecionar o respirador mais adequado, treinando e orientando os funcionários, a brigada interna (será que havia?) e até mesmo os bombeiros.
Como nada disso foi feito, resta-nos a remediação. E agora? O que aprendemos com essa desgraça? Logo após o acidente houve uma onda de fiscalizações, multas e cobranças sobre as boates do Brasil inteiro. Depois, como tudo neste país, o "fogo" esfriou... O gigante voltou a dormir.
Seria de se esperar que este acidente fosse um marco no Brasil, como foi Bhopal para a Indústria Química mundial. Seria de se esperar que programas de Saúde, Segurança e Meio-Ambiente fossem bem implementados em todos os ambientes de trabalho e não somente nas grandes empresas. Seria de se esperar que os programas de educação fossem revisados, para que nossas crianças aprendessem regras básicas de segurança desde cedo. Como se comportar em situações de emergência, por exemplo.
Seria de se esperar.... E seguimos nós... Esperando.... Até quando?
Para saber mais:
Artigo Científico - ABHO
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